Setúbal é território independente e atraente da Zona Sul do Recife

Mesmo sem ser considerado bairro, a localidade tem vida social vigorosa e pulsante

O RECIFE OFFICE, coworking localizado em Setúbal (Boa Viagem), sentindo-se parte da comunidade econômica da “República Independente de Setúbal”, tendo seus sócios como moradores do local, resolveu homenagear SETÚBAL passando essa matéria do portal JC-NE10 com destaque na participação da jornalista do “bairro” Adriana Victor.

***

Se é do sonho dos homens que uma cidade se inventa, como bem nos ensinou o poeta Carlos Pena Filho, é da vida pulsante que dentro dela existe que cada lugar vai firmando identidade própria, moldando a sua forma, ganhando cara e jeito. Assim ocorreu com Setúbal, um “não bairro” da Zona Sul do Recife, delimitado livremente entre as avenidas Barão de Souza Leão e Armindo Moura. Movimentos sociais, ações culturais, novos empreendimentos e a redescoberta da localidade pelos seus moradores direcionam o foco para este canto Sul da cidade, encravado dentro do bairro de Boa Viagem.

A “República Independente de Setúbal” tem praia, teatro e parque – o Dona Lindu, espaço conquistado com a peleja dos moradores, que de lá conseguiram afastar a fome imobiliária – escolas, comércio vivo, gastronomia forte e diversão. E, de uns tempos para cá, também tem gente querendo transformar, pensar a respeito e propor melhorias para o lugar que escolheu para viver. “Aqui, discutiremos de modo prático e objetivo, e buscaremos agir para trazer renovação e vida ao nosso lugar”, informa a página do Facebook do Coletivo Setúbal, grupo com mais de 800 membros. “É um movimento comunitário feito por pessoas comuns, inquietas e dispostas”, afirma, em autodefinição.

A ideia do coletivo começou a ser gestada em 2013. À frente do movimento, o sociólogo Daniel Uchôa, 32 anos, morador de Setúbal desde que nasceu, botou o grupo para moer. “A ideia é usar a rua como espaço de vivência. Tirar as pessoas das casas e dos apartamentos. A rua é o nosso suporte”, assevera Daniel, que vem buscando transformar as vias em mais do que um caminho de passagem para carros. “Ressignificamos aquele não lugar. Esse relacionamento com o espaço fala muito da gente.”

Entre as atividades já desenvolvidas pelo coletivo, encontro literário, mural fotográfico, plantio de mudas. O grupo também usa as redes sociais para denunciar alagamentos, buracos, problemas de trânsito e ainda informar sobre o desaparecimento de pessoas e animais em Setúbal.

Com um adesivaço, os integrantes do coletivo espalharam pela localidade as placas das viaturas que fazem a ronda policial da região, bem como os números de telefone para contato com os responsáveis pela segurança. Usaram o grafite para colorir o muro de um terreno que abrigava focos de dengue, pedindo providências à construtora responsável pela área. “Grafitamos o muro, fotografamos e compartilhamos a imagem nas redes sociais. No dia seguinte, a construtora nos procurou e decidiu drenar o terreno”, conta Daniel, fazendo valer a máxima “todos juntos somos fortes”.

Ele também decidiu empreender em Setúbal. Abriu um food truck de pasteis, o Malabares. Espalhou mesas e cadeiras pelas calçadas, deu charme ao lugar com flores e luzes coloridas. Logo apareceu uma tapiocaria ao lado. Todas as quartas-feiras, há a Esquina do Jazz, com um grupo tocando na calçada. O cachê do músicos é rateado com outros food trucks que participam do evento. “É lindo ver as pessoas nas ruas e nas varandas, ouvindo música”, declara Daniel.

Os moradores também começam a descobrir – ou redescobrir – a República Independente de Setúbal. A jornalista Adriana Franco chegou na localidade faz cinco anos. “No meu trabalho, como gestora de projetos de desenvolvimento local, sempre tive o discurso de que o ‘local’ onde vivemos e ao qual pertencemos é essencial para empoderar as pessoas como cidadãos, como empreendedoras. Mas acabava não exercendo essa atitude no lugar em que morava”, confessa Adriana. “Tenho procurado realmente usar serviços da redondeza, comércio, lazer. Pequenos negócios são fundamentais para uma economia estável. Lojas de roupa, bijuteria, papelaria, costureira e alimentação, resolvo superbem por aqui”, afirma ela, que anda em busca de um bom sapateiro.

“Andar a pé no bairro, fazer freguesia, cumprimentar os porteiros dos prédios, dar um bom dia para quem esteja trabalhando na rua” são atitudes que passaram a fazer parte do cotidiano da jornalista, admitindo que há muito ainda a ser feito por lá. “Precisa melhorar muito no quesito calçadas e, às vezes, vê-se uns atentados em termos de podas. Mas tem coisa bonitinha também: uma vitrine bem cuidada, um muro decorado, um vaso legal do lado de fora da casa. Gosto de chamar de ‘delicadezas urbanas’ esses pequenos cuidados que, se todos nós tivermos, teremos um ambiente muito mais coeso, acolhedor e confiante.”

HISTÓRIA

“Não tinha calçada, nem poste. A meninada jogava bola no gramado em frente à minha casa. Na minha rua, só passava um carro: era o meu”, conta o aposentado Sérgio Lisboa, que chegou para morar na Rua Baltazar Passos, hoje uma das mais movimentadas de Setúbal, em 1970. “Pra comprar qualquer coisa, a gente precisava ir ao centro ou a Imbiribeira. Não existia nem padaria”, recorda-se Margarida Lisboa, mulher de Sérgio.

O casal comprou três terrenos em Setúbal aos antigos funcionários de Wallace Inghan, um inglês que havia deixado boa parte da área como herança para seus três funcionários: uma enfermeira, um jardineiro e uma cozinheira. “Compramos muito barato. Não tinha valor nenhum, era um deserto”, afirma Sérgio. No jardim de sua casa, ele instalou uma carroça francesa, que havia comprado ao Exército brasileiro. “A casa da carroça”, como ficou conhecida pelos moradores da região, é hoje um curso de inglês. Sérgio e a família mudaram-se para a Rua Setúbal.

O nome da localidade deve-se, segundo a Fundação Joaquim Nabuco, ao comerciante Manuel Fernandes Setúbal. No dia 11 de novembro, o vereador Wanderson Florêncio (PSDB) deu entrada a um requerimento na Câmara, solicitando à prefeitura do Recife que reconheça como bairro a área de Setúbal. Mas ele admite que ainda precisa ouvir os moradores para saber se é esta a vontade da maioria. “Não sei se é isso o que queremos. Precisamos ouvir as pessoas, há uma discussão sobre o assunto”, reafirma Daniel Uchoa, que coordena pesquisa sobre o tema junto com o coletivo. Ele admite receber apoio de alguns políticos para realizar ações na localidade, mas garante: “o que fazemos é uma ação política cidadã. Mas nos esforçamos para não criar vínculos político-partidários”.

O arquiteto César Barros, ex-presidente da URB (Empresa de Urbanização do Recife) defende: “O que define um bairro são os seus domínios e fronteiras de convivência, independente da sua delimitação territorial”. “É preciso de uma justificativa provando a sua centralidade autônoma, bem como legitimidade. Além de todo um processo burocrático de consulta popular, abaixo assinados, audiências públicas, etc.”

FAZEMOS PARTE DO LUGAR QUE ESCOLHEMOS

Por Adriana Victor

Jornalistas da minha geração aprenderam que o uso da primeira pessoa deve ser evitado em nome da boa prática do ofício, cujo foco precisa estar sempre no outro. E assim venho seguindo. Aqui peço licença pelo conhecimento de causa que tenho. E provo: cheguei para morar em Setúbal no final da década de 1970; a nossa casa com um pé de azeitona na frente foi construída em rua de lama, barro e mato – hoje a João Cardoso Ayres. Nadei no mar de Setúbal/Boa Viagem até chegar ao fundo, longe da margem, sem medo algum de tubarão. Meu irmão pescou peixe beta em charcos setubalenses, juro!

Íamos de bicicleta para a aula, uma turma de primas e amigas que tinha o privilégio de estudar na Escola Parque da beira-mar, também em Setúbal. Assisti à construção da Visconde de Jequitinhonha, à chegada da primeira padaria, da primeira banca de revistas (na Sá e Souza, firme por lá até hoje).

Ano passado, caminhando em Paris, comprei frutas num comércio de rua, no Marrais, que vieram num saquinho de papel com uma inscrição que dizia mais ou menos assim: “O comércio do seu bairro é o coração do seu bairro”. É possível que a gente precise sair de onde temos raízes para refletir melhor sobre elas? É.

Quando chegamos a Setúbal, prédios grandes não eram permitidos por causa do aeroporto ali perto. O vai e vem de aviões continua no mesmo lugar, mas os edifícios imensos chegaram com força, como em todo o Recife, como na maioria das grandes cidades de todos os cantos. A nossa casa não é mais nossa; o quintal do vizinho, que gentilmente nos ofertava mangas-jasmim, as melhores do mundo, virou um prédio. 

A reflexão também serve como flechas que atiramos para muitos lados: os casebres que margeavam o canal foram expulsos; seus moradores seguiram sendo empurrados para outros lugares menos nobres, assim que a valorização imobiliária por lá chegou. Os privilegiados ficaram. Ficamos.

Há alguns dias, circulei num sábado de manhã por Setúbal. Vi os bares cheios, gente brindando o dia de folga, as calçadas em festa, o comércio vivo e pulsante tal qual estava escrito no saquinho de papel parisiense. Há prédios demais, há verde de menos, é fato. Mas existe também, por outro lado, uma atmosfera transformadora – e não só em Setúbal, mas no Recife. Sim, capitaneada pela classe média. Mas se buscamos uma cidade para ser ocupada por nós, pelas pessoas, pelos moradores, que mal há nisso? 

O cheiro da rua colorida de gente faz bem aos pulmões, alegra o coração. Andar a pé é indispensável para a boa saúde, principalmente a da cuca. Pensamentos, em primeira pessoa, para que consigamos manter a alma, a vida e o vigor do lugar que escolhemos para viver.

Fonte da matéria: JC – NE10

Compartilhar:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Respostas de 2

  1. Excelente narrativa histórica e contextual. Cheguei em setubal em 1974, quando cheguei de MT (hoje, MS). Juventude maravilhosa, muito mar, muito sol, muitas festas, muito voley… Vimos o “bairro” crescer sem ser bairro, mas sempre Setubal, eternamente Setubal! Parabéns!

    1. Muito bom, Walter!
      Adotamos Setúbal para morar e colocar nosso coworking e acho que também fomos adotados pela comunidade.
      Somos felizes com essa decisão e esperamos permanecer aqui por longa data. Sentimos como se fosse não um bairro, mas nosso lugar, um município autônomo, onde nos alegramos com as boas ações dos habitantes, e nos entristecemos quando vemos o desleixo de alguns poucos.
      Seja como for, é nosso lugar, e devemos cuidar dele e zelar por sua manutenção.
      Abs e grato pelos seus comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts relacionados

Vem pro Coworking

RECIFE OFFICE Vem pro Coworking Por Flávio Mendonça O que ganha um profissional utilizando o Coworking? Nesses tempos de novas práticas de trabalho, onde elas

MÉTODO POMODORO

  Entrevista com o gestor de liderança Fábio Telles, concedida ao RECIFE OFFICE, em live, com intuito de oferecer ao seu Cliente soluções para seu

É tempo de transmitir

É TEMPO DE TRANSMITIR Uma coisa que ficou patente nessa era de pandemia e confinamento foi que transmitir é possível e acessível, mas que requer